terça-feira, 31 de maio de 2022

Glória Maria se pronuncia sobre polêmica envolvendo Dia da Consciência Negra

Jornalista Glória Maria, da Rede Globo, resolveu se pronunciar sobre a polêmica envolvendo uma publicação em seu perfil oficial no Instagram. A apresentadora virou alvo de críticas após expressar sua opinião contrária ao Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, e decidiu rebater os usuários. “Apagar este post???? Nunca!!!! Quem não concorda com ele ok! Acho triste mas entendam”, escreveu.

Glória se referia a um post de 15 de novembro, em que publicou uma imagem do ator Morgan Freeman ao lado da frase: “O dia em que pararmos de nos preocupar com Consciência Negra, Amarela ou Branca e nos preocuparmos com Consciência Humana, o racismo desaparece.”

Confira a resposta na íntegra:

“Pra todos que não concordam com este pensamento do Morgan Freeman: Não concordar é um direito de vocês! Mas pretender que todos pensem igual é no mínimo prepotente! Eu concordo totalmente com ele! Pra começar ele não é brasileiro e não está citando o dia da Consciência Negra. Uma conquista nossa! Está falando de algo muito maior. Humanidade! Eu e ele também nascemos negros e pobres e conquistamos nosso espaço com muita luta é trabalho! Não somos privilegiados. Somos pessoas que nunca aceitaram o lugar reservado pra nós num mundo branco! Algum de vocês conhece a minha história e a dele? Se contentam em tirar conclusões e emitir opiniões equivocadas em redes sociais! Nós estudamos, lutamos, resistimos e combatemos todo tipo de discriminação! O preconceito racial é marca nas nossas vidas! Mas não tenho que mudar minhas ideias por imposição de quem quer que seja! Apagar este post???? Nunca!!!! Quem não concorda com ele ok! Acho triste mas entendam. As cabeças e os sentimentos graças a Deus não são iguais! Como lutar contra a desigualdade se não aceitamos as diferenças? Queridos vivam suas vidas e nos deixe viver a nossa! Temos que tentar sempre encontrar nosso próprio caminho! Sem criticar e condenar o dos outros! Cada um precisa combater o racismo da maneira que achar melhor! Lembrando sempre do direito e da opinião do outro! sou negra e me orgulho. Mas não sigo cartilhas . Minhas dores raciais conheci e combati sozinha! Sem rede social para exibir minhas frustrações! Tenho direito e dever de colocar o que penso num espaço que é meu! Não imponho e nao aceito que me digam como devo viver ou pensar! ????”. (Fonte: Itapagipe online)

 

 Consciência Negra ou Humana?

365 dias de Consciência Humana? Seria lindo se não estivéssemos no Brasil. Esse tipo de “grito” por “consciência humana” exatamente no Dia da Consciência Negra soa como um reforço àquele discurso extremamente conservador segundo o qual “não existe racismo no Brasil”

Por Rafael Patto, via Facebook

A página do cantor e compositor Ivan Lins publicou hoje, 20/11, uma foto com a seguinte mensagem: “Por 365 dias de consciência humana”.

Lindo isso, se não estivéssemos no Brasil. Esse tipo de “grito” por “consciência humana” exatamente no dia em que celebramos o Dia da Consciência Negra me soa como um reforço àquele discurso extremamente conservador – do qual Ali Kamel e Demétrio Magnoli são adeptos – segundo o qual “não existe racismo no Brasil”. Logo, não seriam necessárias essas manifestações por afirmação identitária, como as que são promovidas pelo Movimento Negro e que, aos poucos, vão sendo incorporadas como parte dos esforços do poder público em reparar os erros e crimes que foram e são cometidos contra a parcela negra da nossa população.

Quase QUATRO QUINTOS da nossa História (é pouco isso?) foram vividos sob o regime escravocrata. A escravidão não foi praticada indiscriminadamente contra todos os seres humanos que aqui viviam até 1888. Não é possível que hoje queiramos fingir para nós mesmos que as consequências da escravidão sejam ainda sentidas, sem qualquer distinção, por brancos e negros.

Falar que o Dia da Consciência Negra deveria ser substituído por um dia da “consciência humana” no nosso país seria como sugerir que todo esse passado de violência atroz contra os negros seja esquecido. Combinamos assim: “faz de conta que ninguém foi tratado diferentemente em razão da cor de sua pele e, por isso, hoje somos todos iguais. Humanos, com as mesmas oportunidades. Né?” Isso é o cúmulo da falta de consciência histórica!

Se os seres humanos não tivessem inventado um sistema de dominação que submete outros seres humanos a um poder instituído com base na marginalização da maioria em razão de traços como origem geográfica e cor da pele, aí sim, seria lindo celebrar a humanidade como uma coisa harmônica.

Mas, enquanto persistirem os efeitos dessas experiências de subjugação, exploração e aculturação que se abatem sobre aqueles a quem foi negado até o direito de serem reconhecidos e respeitados como seres humanos, temos a obrigação moral de reconhecer que infelizmente, no estágio evolutivo em que nos encontramos hoje, muito pouco há para se celebrar em razão do fato de sermos “todos seres humanos”, mas há muito o que se lembrar a respeito de tudo o que já se fez neste país contra seres humanos que, por causa da cor de sua pele, foram subcategorizados como uma raça inferior não pertencente à espécie humana.

Não entendo por que ainda há pessoas que preferem, depois de tudo o que passou, fingir agora que sempre fomos todos bons amigos.

Quer dizer, até entendo sim…

Ter ou não ter namorado

 Ter ou não ter namorado

Artur da Távola

Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão, é fácil.

Mas namorado, mesmo, é muito difícil. Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção não precisa ser parruda, decidida; ou bandoleira; basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.

Quem não tem namorado é quem não tem amor é quem não sabe o gosto de namorar. Há quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes; mesmo assim pode não ter nenhum namorado.

Não tem namorado quem não sabe o gosto de chuva, cinema sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho.

Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou lagartixa e quem ama sem alegria.

Não tem namorado quem faz pacto de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.

Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente; de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre meia rasgada; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.

Não tem namorado quem não gosta de dormir agarrado, de fazer cesta abraçado, fazer compra junto.

Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor.

Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques, fliperamas, beira d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.

Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar.

Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada, ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais.

Não tem namorado quem ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.

Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz.

Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.

Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim.

Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria.

Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido. ENLOU-CRESÇA.

Está na hora de legalizar as drogas?

Ações repressivas na Cracolândia de São Paulo e a liberação da maconha em vários países alimentam o debate sobre a melhor política para reduzir os danos das drogas

Alexandre Mansur e Giovanna Wolf Tadini


(Ilustração: André Ducci)


Debatedores: Ana Paula Pellegrino e Ives Gandra da Silva Martins

Barbárie. Limpeza. Truculência. Segurança. Esses foram alguns dos adjetivos mais comuns nas redes sociais na esteira da ação realizada no dia 21 de maio pelas polícias Civil e Militar de São Paulo na região da “Cracolândia”, no centro da capital paulista. O objetivo da empreitada foi acabar com o tráfico e a concentração de dependentes. Apesar dos números da operação – 38 suspeitos de tráfico presos, 10 quilos de crack e três fuzis apreendidos, 300 pessoas encaminhadas para abrigos –, o principal resultado dela é mostrar o grau de complexidade de qualquer tentativa de lidar com a dependência química na sociedade. Cresce no Brasil e no mundo o debate sobre alternativas à abordagem meramente repressiva para o problema. Nos Estados Unidos, depois de uma revisão da  “guerra às drogas” iniciada na década de 1970, nos últimos cinco anos a maioria dos estados descriminalizou a maconha de alguma forma. Eles seguem um modelo adotado pela Europa, de tratar o consumo como questão médica e não de segurança pública. No Uruguai, a maconha foi legalizada desde a produção até o consumo. No Brasil, a descriminalização das drogas está em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Em nosso país, um grupo cada vez mais expressivo de pesquisadores, profissionais de saúde e políticos propõe a regulamentação das substâncias hoje ilícitas, de acordo com o grau de periculosidade de cada uma. Outro grupo acredita que a medida seria ruim, pois incentivaria o consumo, agravando o sofrimento de usuários e familiares, além dos custos da saúde pública.

É importante frisar que, neste debate, ninguém defende a liberação total de todas as drogas. No Brasil, o Instituto Igarapé vem liderando discussões em torno da descriminalização do consumo e da regulamentação da venda de algumas das substâncias hoje proibidas, respeitando o grau de risco de cada uma. Por essa proposta, drogas como o crack continuariam proibidas e outras, como a maconha, teriam um uso menos restrito. O debate ganhou peso com a adesão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Nosso norte é buscar experiências que têm gerado resultado”, diz Ana Paula Pellegrino, pesquisadora do Instituto Igarapé. O jurista Ives Gandra, uma das vozes proeminentes da postura mais cautelosa, também entende que o consumidor que se vicia não deve cumprir pena num presídio com outros bandidos experientes. Para ele, a detenção do dependente deveria ser em clínica de recuperação. Ele afirma, no entanto, que a descriminalização das drogas seria um passo equivocado. A título de desmontar a máquina do crime, ela estaria alimentando o consumo ilimitado.


ÉPOCA – Devemos liberar e regulamentar as drogas?

Ives Gandra Martins – Eu, pessoalmente, tenho alguns sentimentos contra. Tenho ouvido argumentos ponderados, inclusive do próprio presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas entendo que, ao legalizar as drogas, teoricamente estaríamos nos afastando da criminalidade daqueles que as exploram e têm um mercado lucrativo. Por outro lado, estaríamos estimulando o vício. Por exemplo, existem movimentos hoje na Holanda repensando a legalização. Isso porque, em vez de reduzir o consumo de drogas, houve aumento. Indiscutivelmente, dizer que o consumo de uma dose não vai tornar o cidadão dependente não procede. Nós sabemos perfeitamente que a tendência de criar dependência é muito grande. A meu ver, seria incoerente pensarmos que para determinados remédios que geram dependência haja necessidade de receita médica, enquanto para drogas que geram uma dependência muito maior nós possamos legalizar o uso. Essa é uma posição antiga minha. Evidentemente, numa democracia é preciso ouvir todas as posições. Mas eu não tenho por que mudar a minha.

Ana Paula Pellegrino – Com todo o respeito à opinião do doutor Ives, sou do campo oposto. Aqui no Igarapé temos colhido dados e acompanhado diversas experiências pelo mundo. Entendemos que, se hoje nossa sociedade fosse pensar em políticas para lidar com a questão da dependência, jamais teríamos desenhado as políticas da maneira como elas estão. Defendemos a regulação responsável de drogas. A gente avaliou que existe um ponto ótimo de regulação a partir do Estado. Hoje, a gente não só proíbe as drogas, como criminaliza seu consumo. É importante chamar a atenção para isso porque a criminalização vai completamente contra qualquer prescrição que esteja preocupada com a saúde da pessoa que usa drogas. Eu, assim como o doutor Ives, me preocupo muito com essa questão de que estímulo a gente dá ao uso e ao abuso dessas substâncias e quais são os impactos que isso pode causar em nossa sociedade. O que a gente vê em dados concretos hoje é que criminalizar o consumo aumenta os danos às pessoas que usam drogas. O desafio que se lança é de voltar a esses nossos objetivos de manter a saúde e a segurança de nossas comunidades e redesenhar as políticas.  Nossa leitura é que sim, temos de pensar em outros modelos de regulação responsável de drogas. Mas agora para o Brasil o primeiro passo muito importante é a descriminalização do consumo. O caso da Holanda, que o doutor Ives trouxe, é uma situação em que não há uma regulação completa do mercado. Lá só é legal a venda para o usuário final. Mas o fornecimento para as lojas não foi regulado. Na Holanda, houve uma regulação forte para a maconha. Isso foi uma política pensada para reduzir o uso de drogas mais pesadas, como as injetáveis. A política foi criada quando a Europa passava por uma crise de overdose e abuso de heroína. Essa crise diminuiu. Por um lado, aumentou o uso de maconha, porque ela se tornou mais acessível. Por outro lado, a maconha causa menos danos do que as drogas injetáveis. Foi feita uma opção política por uma terapia de substituição. E, nesse aspecto, a política da Holanda foi considerada um sucesso.

Ives Gandra – Respeitando o que disse a doutora Ana Paula, em primeiro lugar, você estava falando do caso da Holanda. É evidente que a droga mais barata é mais consumida que a mais cara. A droga barata causa menos danos, mas não deixa de criar dependência. O grande desafio é o combate ao narcotraficante. O simples fato de existirem políticas para eliminar dependência demonstra que ela não é desejada para a sociedade. Uma sociedade que entende que uma das formas de felicidade é o consumo de drogas está condenada a não progredir. Vamos usar como exemplo a Cracolândia. Lá existem pessoas de baixo potencial econômico, viciadas. Esses que estão lá precisam de tratamento médico. Eles não precisam de uma postura como: “A partir de agora vocês estão tranquilos. Não terão problema nenhum. Podem consumir [as drogas]. E poderão continuar vivendo na Cracolândia sem ter de gastar uma fortuna com a criminalidade”. Embora eu reconheça que o combate ao narcotráfico não tem sido eficiente, também entendo que precisamos encontrar caminhos para tentar controlar o crime nesse setor. O consumo de drogas é sempre negativo para a saúde, independentemente do potencial da substância. Eu tenho a impressão de que o melhor caminho é evitar. É fazer políticas adequadas nesse combate. Ao mesmo tempo existe hoje a jurisprudência de o pequeno usuário não ter sua criminalização, respeitando a orientação do Supremo [Tribunal Federal]. O narcotráfico tem de ser combatido, mas não com a liberação das drogas. Com uma liberação, eles não terão objeto e encontrarão outras formas de criminalidade.


ÉPOCA – Como os senhores veem a proposta de criar uma política que estabelece uma gradação das restrições de acordo com o grau de periculosidade de cada droga? Faria sentido?

Ana Paula – Temos de pensar especificamente para cada droga. Existem alguns estudos no Brasil que avaliam os efeitos da terapia de substituição da droga mais pesada pela mais leve. Aqui partimos da compreensão de que existem diferentes consumos de drogas. Há a droga com objetivo terapêutico, medicinal, com um fim específico. Em relação ao uso recreativo, existem o uso e o abuso. Nem todo uso de drogas é problemático. Dados qualitativos contestam uma informação que o doutor Ives colocou sobre a Cracolândia. Lá aparecem pessoas de terno, que vão, usam a droga e seguem suas vidas normalmente. Em relação ao crack, como é uma droga de alta periculosidade, a gente tende a achar que ele não poderia ficar sob o controle do mercado. No caso do crack, deveria haver um controle direto e agressivo do Estado. O modelo para isso é o de buscar redução de danos e distribuição terapêutica da substância de forma controlada. As drogas mais leves já podem ter menos controle do Estado. Há pessoas que nunca vão deixar de usar drogas. Muitas vezes não cabe a nós esse julgamento moral a partir da lei. Discordando do doutor Ives, hoje em dia no Brasil o consumo de drogas ainda é crime. Não gera pena de prisão, mas sobrecarrega o sistema de justiça criminal e as forças de polícia, por causa de uma orientação muito voltada para esse pequeno consumo.

Ives Gandra – A pessoa que começa a consumir a droga tem a certeza de que vai controlar perfeitamente seu consumo. Mas o que ocorre na prática é que a pessoa cada vez consome mais, até o momento em que não consegue controlar e passa a usar drogas que dão mais êxtase. Isso com o drama que se cria para a família. Fica difícil reconhecer o limite. Essa é a razão pela qual qualquer campanha de esclarecimento muitas vezes não surte o efeito necessário em relação ao jovem que já teve a primeira experiência com as drogas. Por essa razão, doutora Ana Paula, sem querer contestar sua procura por uma solução adequada para esse problema, eu prefiro continuar com minha posição de combater e melhorar o sistema de controle para que o usuário de pequena dose, seguindo a jurisprudência do Supremo, seja submetido a tratamento, e não à criminalização.


ÉPOCA – Faria sentido rever dentro de uma nova política todas as substâncias que podem gerar dependência e consequências para a saúde, inclusive o álcool?

Ives Gandra – Uma das estratégias para o álcool é a tributação. Ela é elevada nas bebidas de alta dosagem alcoólica. Com isso, o consumo das bebidas de maior teor alcoólico é menor que o daquelas de teor mais baixo. Quase todo mundo toma cerveja, que tem a dosagem alcoólica menor. Mas também pode surgir a dependência. De qualquer forma, não compararia o álcool com outras drogas que geram a dependência como remédios para depressão. No caso delas, alguns médicos aconselham a manter o consumo só com prescrição médica. A grande questão é a dependência. Quando o cidadão se torna dependente, ele compromete seu futuro. Ele pode perder o emprego, destruir a família. É alguém que fica à margem da sociedade. Evitar que isso aconteça é nosso grande desafio.

Ana Paula – A posição é a mesma quanto ao álcool. Precisamos olhar para todas as drogas de acordo com o risco que elas apresentam. Não temos uma relação saudável com o álcool enquanto sociedade. A gente teve alguns avanços com o tabaco. Diminuímos o número de pessoas que fumam no Brasil, com intervenções muito pautadas em prevenção e informação. A gente não faz isso com o álcool. Nós temos a taxação, melhoramos nas propagandas, mas temos muito a avançar. E a solução não é criminalizar o álcool. Os Estados Unidos passaram pela época da proibição de álcool nos anos 1930 e foi a única vez que registraram o uso injetável de álcool. O resultado foi que as pessoas desenvolveram usos ainda mais danosos dessa substância. E ainda houve o aumento do crime organizado. Existem experiências que dão resultados. A gente tem de olhar para elas e com isso construir modelos de fato orientados pela questão da saúde pública e da segurança de nossas comunidades.


Relacionamento aberto e afins

 Poliamor: brasileiros apostam em diferentes formas de relacionamentos

Enquanto a ciência ainda tem poucas respostas para explicar a monogamia entre humanos, novas formas de se relacionar buscam espaço

Carol Castro e Giuliana de Toledo 

(Fonte: Revista Galileu)

Conheça as histórias de pessoas que optaram por diferentes formas de relacionamento. Em sentido horário, começando do canto superior esquerdo: Phelipe (esq.), André (dir.) e Rafael (sentado): trisal aberto | André e Marina: casamento fechado | Fernando (de pé), Andréa e Sérgio: poliamor aberto | André e Muriel: namoro aberto | Viviane: namoro aberto a distância
(Foto: Júlia Rodrigues e Tomás Arthuzzi)


    Uma mesa para três em algum restaurante “coxa” de São Paulo, escolhido por André Cobra, 28 anos. É assim que ele, Rafael Medeiros e Phelipe Vittorelli pretendem passar o Dia dos Namorados — o primeiro desde que começaram um relacionamento a três, dois meses atrás. O namoro, sério e aberto (com liberdade total para ficarem com outras pessoas), começou com uma brincadeira.

    Rafael e Phelipe estavam juntos desde fevereiro, quando André apareceu na turma de amigos do casal e abalou os corações dos dois. “Eu já conhecia o André, tínhamos ‘ficado’ alguns anos atrás. Fiquei de novo e comecei a perceber uma tensão entre ele e o Phelipe”, conta Rafael. Um dia, no elevador, André sugeriu que os três ficassem juntos de uma vez. “Ele diz que era brincadeira”, ri Phelipe. Mas, poucos dias depois, André se juntou de fato ao relacionamento do casal, que virou, então, um trisal.

    A alguns quilômetros, em Guarulhos, na Grande São Paulo, o 12 de junho da empresária Andréa Dias, 42 anos, também será festejado a três, com os maridos Sérgio Dias — com quem se casou de papel passado e com cerimônia na igreja há mais de 15 anos — e Fernando Costa — que há cinco largou a vida em Portugal, sua terra natal, para se unir à dupla no Brasil. Desde então, todos dividem a mesma casa e também os cuidados com Matheus, filho de Fernando com outra mulher, que vai completar três anos em agosto.

    Os três namorados e os três casados encaram diariamente as mesmas dificuldades que um casal monogâmico, seja ele heterossexual, seja homossexual: ciúmes, desentendimentos sobre a vida doméstica e atritos bobos, causados pelas diferenças de personalidade. E a solução também é a mesma: uma boa dose de conversa, respeito e paciência.

    Entre os gays, no entanto, relacionamentos abertos não são tão incomuns quanto entre os heterossexuais. Um estudo da Universidade Estadual de San Francisco (EUA) acompanhou 556 casais de homens durante três anos — e descobriu que 50% deles faziam sexo fora do casamento com aprovação total do parceiro. Embora não exista um “censo dos relacionamentos” para que sejam conhecidos os dados de toda a população e bons estudos na área ainda sejam escassos, as maiores pesquisas feitas nos últimos anos estimam que, ao todo, nos Estados Unidos, cerca de 5% das pessoas vivam relações não monogâmicas consensuais, aquelas em que todos os envolvidos concordam com amores e/ou sexo com outros. Nesse grupo, conforme o levantamento, a maioria tende a ser de homens gays.

   
VISIBILIDADE

    Embora ainda tão estigmatizados, é fato que os relacionamentos não monogâmicos têm despertado cada vez mais a atenção da sociedade. Um reflexo claro da curiosidade está nas pesquisas no Google. Considerando só o termo “poliamor”, a procura quadruplicou entre os usuários brasileiros nos últimos cinco anos. Hollywood também tem dado sua colaboração no debate: celebridades de todas as idades já contestaram os valores da monogamia. Logo após o divórcio, em março, a atriz Scarlett Johansson, de 32 anos, contou que não acha natural ser uma pessoa monogâmica — “Acho que isso é um trabalho, é um grande trabalho”. E recentemente, Anne e Kirk Douglas, com 98 e 100 anos, respectivamente, lançaram um livro contando seus casos extraconjugais, todos eles vividos com a aprovação dos dois.

    Para esses casais, a lealdade vale mais do que a tradicional fidelidade sexual e afetiva. É o caso de Muriel Duarte e André Biozoti, que levam um relacionamento aberto há cinco anos. “Eu não me enquadro em um padrão heteronormativo monogâmico. As pessoas sentem atração por outros durante o namoro ou casamento — e tudo bem”, conta ela. Os dados corroboram a percepção de Muriel: 60% dos homens e 47% das mulheres brasileiras admitiram já terem sido infiéis, segundo pesquisa da antropóloga Mirian Goldenberg realizada com 1.279 pessoas.

    “Se metade das pessoas traem, existe alguma coisa errada com a monogamia”, ri Regina Faria, que se tornou ativista da Rede Relações Livres em Porto Alegre em 2012, aos 42 anos. O grupo vai além dos relacionamentos abertos e do poliamor no quesito desprendimento: rejeita qualquer forma de controle de uma pessoa sobre outra em prol da liberdade individual total. Para Marco Rodrigues, um dos fundadores do movimento, que vive relações livres desde a sua adolescência, na década de 80, existe atualmente uma crise profunda do ideal de família. “Mas não vivemos a construção de alternativas, elas estão escondidas. Estamos vivendo uma agonia muito grande porque o antigo não funciona, mas ninguém faz o novo — ou faz o novo muito parecido com o antigo”, diz. Para ganhar mais visibilidade, o grupo, hoje com cerca de 50 pessoas, começou em maio a montar no centro da capital gaúcha o Ateliê 130, sua primeira sede, e lançou em junho um livro explicando os fundamentos das RLi (pronuncia-se “érreli”, apelido da rede). “As pessoas acham que é alguma brincadeira de solteiro, algo assim. Mas erotismo é o assunto sobre o qual nós menos conversamos nos nossos encontros”, explica Rodrigues.


DE ONDE VIEMOS?

    Nem todo mundo concorda com essa liberdade toda — relacionamentos abertos, poliamorosos ou livres ainda são exceções. Só para se ter ideia, no ano passado, a YouGov, empresa global de pesquisa de mercado na internet, perguntou a mil norte-americanos de diferentes idades se eles deixariam seu parceiro romântico fazer sexo com outras pessoas: 8% não souberam responder, 5% aceitariam numa boa, 19% topariam em algumas circunstâncias e 68% não permitiriam de jeito nenhum. É o caso de casais como Marina e André Bragatto, juntos há 12 anos e casados de papel passado desde 2013, que preferem ser apenas dois — indiscutivelmente dois. “Eu nunca senti vontade de ficar com outras pessoas”, conta ela.

    O que faz, então, existirem comportamentos tão diferentes entre os humanos? A ciência ainda não tem uma resposta tão clara para a prevalência da monogamia — e suas exceções — entre nós. Fazemos parte de um grupo bem pequeno: só 5% das espécies de mamíferos levam a vida monogamicamente, casos em que o macho forma vínculo de longo prazo com uma única fêmea e oferece cuidados paternos. Nos 95% restantes, ele nem quer saber de tomar conta da prole e se acasala com a maior quantidade possível de fêmeas, o que, em termos de evolução, é uma vantagem, já que aumenta a diversidade genética da população.


PARA ONDE VAMOS?

    Mesmo sem direitos legais reconhecidos e sob olhares julgadores, os relacionamentos não monogâmicos consensuais parecem estar vencendo a resistência pouco a pouco, principalmente entre os mais jovens. De acordo com a pesquisa da consultoria YouGov, feita em 2016 nos Estados Unidos, 17% dos participantes de 18 a 44 anos disseram já ter tido relações sexuais com outra pessoa com o consentimento do parceiro. O índice cai para 9% na faixa de 45 a 64 anos e despenca para 3% entre os maiores de 65. Só o que não muda muito é o índice de quem pulou a cerca sorrateiramente. Nos extremos, entre os mais jovens e os mais velhos, o número é o mesmo: 21% transaram com outros e não deram um pio — o que mostra que, para além das paredes do quarto, expor essas vontades ainda é um tabu. O mesmo estudo descobriu também que só 69% das mulheres e 52% dos homens acham que o tipo ideal de relacionamento é completamente monogâmico. Para o restante, alguma medida de não monogamia seria bem-vinda.

    Da intenção à prática, porém, o preconceito inibe mais “saídas do armário” de quem gostaria de viver, ou já vive às escondidas, de um jeito fora do padrão. “No trabalho, já disseram que o que eu tenho ‘não é casamento, é putaria’”, lembra Sérgio Dias, que leva uma vida a três. “Assumir-se requer uma avaliação cuidadosa das circunstâncias individuais em questões como segurança, dependência financeira, emprego, situação familiar e níveis de conforto em relação a estigma e rejeição”, destaca a filósofa Carrie Jenkins.

    Em resumo, não há receita fácil. Cada um escolhe a forma que lhe cabe melhor — e cabe a todos nós aceitar e respeitar as escolhas diferentes, tanto monogâmicas como poliafetivas. Até porque, no fim das contas, o sonho de todos é um só: a felicidade.


HORA DA VERDADE

Pesquisa nos EUA mostra que muitos traem, mas poucos abririam a relação

Como você reagiria se seu parceiro quisesse ter relações sexuais com outras pessoas?


(Foto: Júlia Rodrigues e Tomás Arthuzzi)

Você já se relacionou sexualmente com alguém sem o consentimento do seu parceiro?

(Foto: Júlia Rodrigues e Tomás Arthuzzi)


Juventude inútil

 A juventude "inútil"

Paulo Pereira de Almeida

Muito se tem escrito acerca da radicalização da juventude e da sua - mais aparente do que real - falta de objetivos de vida e de propósitos. Pessoalmente, devo desde já esclarecer que este argumento não me convence, ora por ser demasiado simplista, ora por parecer intelectualmente desonesto.

A juventude é - como todos sabemos - uma época de escolhas e de experiências. Em sociedades democráticas, desejavelmente secularizadas e livres na escolha das opções de vida, morais, sexuais, religiosas, ou agnósticas, existem - obviamente - riscos de que uma suposta liberdade "excessiva" deixe as juventudes sem projeto. Mas esse constitui - precisamente - o preço a pagar pela manutenção da diversidade de opiniões, de opções, de escolhas que sustentam - e muito bem - as nossas democracias. Só uma visão retrógrada, passadista, ditatorial, é que pode conceber uma sociedade democrática orientada por valores de alguns impostos à maioria da população. Aliás, este é - justamente - o ideário dos regimes ditatoriais, quer os que assentam no culto das personalidades, quer os que assentam no culto religioso, obscurantista e medievo. Não é por acaso que - precisamente nestes regimes políticos totalitários e assentes na propaganda - os jovens são logo desde cedo doutrinados e incluídos em grupos mais vastos, de modo a que assim se possam condicionar as suas opções e escolhas futuras, mantendo o status quo vigente.

Posto isto, devo confessar que sempre me preocuparam - e continuam a preocupar -, os discursos que tentam associar a juventude a uma categoria social de pessoas "inúteis", sem "projeto de vida" ou - no limite - "preguiçosas". Nada de mais errado e intelectualmente capcioso: seja no espaço da escola, de casa, das ruas, dos movimentos sociais, das redes virtuais, ou de muitos outros, é a partir da liberdade de escolha e de experiências que as juventudes constroem a sua identidade, moldando a moral atual e futura das sociedades. Por isso mesmo - e como facilmente se depreende - é nas democracias avançadas, modernas, livres, que os jovens melhor se encontram preparados para fazer escolhas, para definirem o seu projeto de vida atual e futuro, e para serem - como diz o aforismo - os "adultos de amanhã". Cabe - pois - aos poderes públicos, aos governos, aos partidos políticos, às escolas, às universidades, e às instituições em geral, a responsabilidade de manterem em aberto o leque de escolhas das juventudes. Trata-se - naturalmente - de lhes proporcionar um lugar no mercado de trabalho, nas instituições de enquadramento social, ou mesmo nas organizações religiosas ou laicas. E num momento em que se discute a meia dúzia de casos - no particular, preocupantes, mas, no geral, irrelevantes - de "jovens radicalizados" pelas fileiras do terrorismo jihadista, é tempo de olhar para os mais de 30% de jovens desempregados pela União Europeia e Estados Unidos da América e perguntar se será este o caminho certo para as sociedades capitalistas avançadas.

Entretanto - e como nota de esperança - ficam os cerca de 40 mil jovens que ingressaram voluntariamente nas Forças Armadas portuguesas: este- sim - um projeto de vida válido e de sucesso. Um exemplo - esperamos -que seja seguido por muitos.

(Fonte: Diário de Notícias)